Coluna do Santiago Bernardes
(texto reproduzido integralmente, publicaçao orignal disponível em https://www.facebook.com/coletivocaicarass/posts/4100208310036623?comment_id=4100261906697930&reply_comment_id=4103821343008653¬if_id=1620826607462453¬if_t=feed_comment_reply&ref=notif)
Recentemente, num grupo de facebook que trata de memórias da cidade de Ubatuba, uma postagem chamou a atenção devido a uma pretensa pesquisa histórica que carrega um teor de intolerância e desconhecimento da própria história que a autora alega pesquisar. Além de questionar a luta dos remanescentes do quilombo da Caçandoca pelo direito à terra, que envolve diversos conflitos externos e internos e uma grande complexidade de contextos que devem ser abordados com cuidado e dentro de uma perspectiva que abranja as narrativas locais diversificadas, além da perspectiva jurídica e histórica, a autora afirma que em Ubatuba “nunca houve quilombo algum”, na “acepção da palavra”. Esse texto é uma reflexão sobre a postagem e sobre o atual contexto que vivemos em que discursos de intolerância vestidos de pesquisa histórica podem encampar ações e pensamentos que acirram conflitos e a difusão de falsas informações.

Imagem: reprodução do post original, disponível aqui.
A "acepção da palavra", segundo a gramática brasileira: "Cada um dos significados particulares e distintos de uma palavra ou de uma frase, segundo o contexto em que elas estão empregadas; sentido, significado", portanto não há um significado restrito e fechado. Isso se aplica também ao termo "Quilombo", que como mencionei não são formados apenas por fugas no período colonial, mas também por herança, compra, doação ou abandono das antigas fazendas coloniais. O significado mais usual na época da colônia foi aplicado pelos colonizadores aos lugares onde se refugiavam os negros que fugiam das fazendas, porém essa é uma versão da visão colonial da dominação da época e muito limitada, obviamente devido aos interesses coloniais vigentes. A palavra quilombo é de origem banto (língua africana) kilombo e significa acampamento ou fortaleza, não necessariamente apenas lugar de fuga. Pesquisas acadêmicas, em Antropologia e História principalmente, demonstram que associar os quilombos apenas à fuga é limitador das dinâmicas sociais que esses grupos desenvolveram. Também a ideia preconcebida de que os quilombos se formaram apenas de maneira isolada não corresponde à realidade diversa de muitos lugares, pois existiram e existem vários quilombos urbanos no país. Assim tanto os direitos quanto a definição histórica, social, antropológica e cultural do termo quilombo são mais consistentes do que a afirmação leviana de que "Há uns anos inventaram uma nova definição de quilombo para acomodar a vontade política de um grupo". Isso é simplista demais para a realidade complexa da História., além de possuir uma conotação implícita de intolerância. E para quem se dispõe a estudar História é necessário cuidado e apuro na difusão das informações.
"Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia, na verdade, a invisibilidade produzida pela história oficial, cuja ideologia, propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira (GUSMÃO, 1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política governamental que regularizasse as posses de terras, extremamente comuns à época, de grupos e/ou famílias negras após a abolição conforme comprovam os estudos de Ciro Cardoso (1987)."

Imagem: reprodução do post original, disponível aqui.
Em Ubatuba e região, além dos quilombos da Caçandoca, do Sertão de Itamambuca, Da Fazenda e do Camburi podem inclusive ter existido outros, pois muitos dos quilombos tinham uma existência curta, já que quando eram descobertos eram violentamente reprimidos e destruídos pelos senhores coloniais. Há também a história local de uma rebelião que foi planejada pelos escravos para obterem liberdade no natal de 1831.
Sobre provas documentais da existência dos quilombos em Ubatuba, há os RTCs do ITESP nos quais além das árvores genealógicas das famílias, há documentação que atestam a maneira como se formaram os quilombos, incluindo aí documentos de doação de terras e de posse. O fato de não você não ter encontrado notícias sobre quilombos na época colonial na região não é prova cabal da não existência deles, pois além dessas fontes poderem ter se perdido pelo tempo, como explicado anteriormente os quilombos se formaram de maneiras diversas e mais complexas do que a forma mais conhecida e divulgada, que é por fuga durante o período escravocrata e que por motivos óbvios era a versão difundida pelo colonizador e após ele, pela sociedade branca patriarcal que continuou dominando o país e que realizou inclusive projetos de eugenia para apagar a História opressora do país e da população negra. Além de que a historiografia oral é uma metodologia válida e reconhecida e traz a versão da narrativa direta do povo e de sua memória e não apenas a versão das fontes documentais escritas encontradas, pois elas não são definitivas e carregam a visão parcial da sociedade dominante à época. A fonte oral acrescenta uma dimensão viva, inserindo novas perspectivas à História que não estão presentes em outros tipos de documentos. Ainda sobre documentos é preciso relembrar que as notícias, cartas, relatórios de província, de comércio de escravos, etc, foram escritas pelos poderes dominantes da sociedade escravagista e que naturalmente omitiam e mudavam o que era relatado para inserir o que era mais conveniente. Muitos documentos também foram destruídos intencionalmente.
Um pouco sobre o contexto histórico:
Ubatuba, até ao ínicio do século XIX, possuía pequenas propriedades agrícolas de subsistência que tinham um número pequeno de escravos, pois os proprietários não possuíam grande capital. Com a chegada de colonos estrangeiros com capital, estes compraram ou receberam terras vastas e trouxeram um número grande de pessoas escravizadas da África para trabalharem nas terras. Após a decadência do período cafeeiro, na segunda metade do Séc. XIX, foram abandonadas muitas fazendas, que foram ocupadas por ex-escravos que receberam também terras por doação, como atestam documentos levantados à época do levantamento oficial pelos órgãos responsáveis.
Com o declínio da produção cafeeira, a partir da segunda metade do século XIX, muitas fazendas foram abandonadas, loteadas e vendidas. Porções de terra das fazendas foram ocupadas, ou doadas a ex-escravos. O litoral norte de São Paulo esteve num relativo isolamento até a construção da rodovia Rio-santos( BR-101), na década de 1970. A partir de então, a realidade fundiária da cidade de Ubatuba mudou com a ação de grileiros e da especulação imobiliária que avançou de forma mais agressiva pela facilidade de acesso à região. As comunidades caiçaras e quilombolas, que viviam então com um grau de relativa autonomia, mas também com as dificuldades inerentes à época, foram expulsas de suas posses ou foram obrigadas a vendê-las por preços irrisórios.
O direito à terra pelas comunidades quilombolas está garantida na Constituição Federal de 1988, ou seja, há 33 anos.
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), consagra às comunidades de quilombolas o direito à propriedade de suas terras. E também o acesso a projeto de sustentabilidade, preservação e valorização de seus patrimônios histórico-culturais, assegurado nos Artigos 214, 215 e 216 da Constituição do Brasil.
E há ainda o reconhecimento oficial como comunidade quilombola, pela Fundação Cultural Palmares
A luta das comunidades quilombolas do Brasil e da nossa região pela permanência em suas terras envolve uma questão fundiária complexa e conflitos e disputas com grandes grupos empresariais imobiliários e políticos e abordá-las requer aprofundamento e visão ampla, sem inserir críticas e opiniões que carecem de abrangência histórica sob o risco de se continuar propagando a versão colonial e opressora que ainda hoje permeia as instituições nacionais e a opinião pública e que numa época como a atual em que os preconceitos, os discursos de ódio e de exclusão estão bem incisivos e recorrentes é perigoso difundir informações imprecisas e que podem acirrar essa atual situação, inclusive as ações de violência.
POSTAGEM DA PÁGINA “MEMÓRIA DE UBATUBA, RETALHOS HISTÓRICOS”:
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Há muitas pesquisas sérias e respeitadas que trazem muitos esclarecimentos sobre o tema, deixo algumas, além das citadas no texto, a título de referência:
-BALDI, C. A. As comunidades quilombolas e o seu reconhecimento jurídico.
-ABA, Associação Brasileira de Antropologia (1994). «Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais.». Grupo de Trabalho “Comunidades Negras Rurais”
-ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Quilombos: Geografia Africana - Cartografia Étnica - Territórios Tradicionais. Brasília, Mapas Editora & Consultoria, 2009
-ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (1999). «"Direitos Territoriais das Comunidades Negras Rurais: Aspectos Jurídicos e Antropológicos" (realizado em abril de 1997)». Documentos do ISA, nº 5 – Direitos Territoriais das Comunidades Negras Rurais. Resultado do seminário interno com convidados.
-CARDOSO, C. F.S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
-GOMES, Flávio dos Santos (2015). Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma
-GOMES, Flávio dos Santos (2018). Quilombos/ Remanescentes de Quilombos. São Paulo: Companhia das Letras
-GUSMÃO, N.M. Os Direitos dos Remanescentes de Quilombos Cultura Vozes, nº 6.
São Paulo: Vozes, nov/dez de 1995
_MOURA, Clóvis. Rebeliões na senzala, quilombos, insurreições, guerrilhas. São
Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1981
- A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas, (Alessandra Schmitt, Maria Cecília Manzoni Turatti, Maria Celinba Pereira de Carvalho, Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889.pdf